Doutrina – por Carlos Fernando Carvalho Motta Filho

Não se pode criar tanto espanto diante de cada avanço legislativo que se opera em nosso sistema jurídico. Defender a citação em execução de quantia certa fixada em sentença é favorecer o condenado com um mês a mais de burocracia com a expedição e cumprimento de mandados e afins. Visando dar fim a esses expedientes, o artigo 475-J do CPC elimina a vergonha de ter em mãos uma decisão judicial transitada em julgado sem eficácia prática alguma. Se para dar efeitos concretos à lei precisa-se de uma sentença, de que vale uma sentença se não produz efeitos concretos? Nada. Não há outra resposta para essa pergunta que não se esbalde em teoréticas processualísticas sem compromisso com o mundo dos fatos.
            Espanta-se a técnica que maltrata a carne. Tenho visto alguns de meus pares confinarem o espírito da lei aos confins do inferno mais abominante que o homem imaginou. Quando dizem que a sentença terá que ser proferida “na forma do artigo 475-J do CPC”, para ter eficácia executiva no que se refere a multa pelo descumprimento da decisão, deparo-me com o mais vil assassinato do princípio segundo o qual a lei processual tem aplicação imediata. Há também quem defenda que o silêncio quanto ao termo a quo para fluência do prazo para imposição da multa prevista no referido dispositivo legal, implica na incidência da regra geral de contagem do prazo a partir da intimação pessoal. Segundo esse raciocínio, se o ato é da parte (pagamento), devemos então partir para a intimação pessoal dela e não de seu advogado (artigo 238, do CPC), mesmo havendo regra expressa no referido preceito legal, determinando que a intimação da penhora seja feita na pessoa do advogado (§1º do artigo 475-J, do CPC). Perfeito, segundo a referida tese, damos ao vencido quinze dias para pagar, depois de uma intimação/citação não prevista em lei. Ora, se a lei cala, aplica-se a regra geral, sendo necessária a intimação pessoal do executado para que se possa aplicar a multa pelo descumprimento da sentença. Com esse entendimento, sepultamos não só a intenção da nova lei de acelerar o integral ressarcimento do exequente, como também negamos a existência de uma ciência: a hermenêutica. A lei não pode ser tratada como se burra fosse. O que foi enumerado de maneira expressa na lei, não pode ser dissociado do seu sistema, assim como o que foi omitido há de ser integrado e preenchido conforme sua interpretação sistemática e teleológica, de molde a concretizar a finalidade da própria norma (artigos 3º e 4º, da LICC). Nas palavras de Humberto Theodoro Junior, “A norma jurídica não dorme placidamente nos textos legislativos. Há que ser trabalhada e concretizada pelo operador do Direito”1
            Muito ao contrário do que preconiza a tese acima esposada (necessidade da intimação), a nova sistemática da lei que regula o processo de execução pôs fim a dicotomia que antes existia entre ele e o processo de conhecimento, tal como concebia Liebman. Com todas as vênias, é de todo inútil que se exijam duas fases de citação para alcançar a concretude do mesmo direito. Estabilizada a relação processual no campo do processo de conhecimento, agora cabe ao vencido cuidar de cumprir a sentença, pelos laços que o ligam ao seu advogado.
            Por outro lado, não há que se falar, muito menos, em intimação dirigida ao advogado para o cumprimento da sentença. O dispositivo em comento não exige essa formalidade. Muito embora o não cumprimento espontâneo da sentença implique no dever de arcar com uma multa pelo inadimplemento, interessante e maldosa tem sido a orientação de alguns tribunais que cismam em sugerir que seus juízes determinem a intimação do advogado para o cumprimento da sentença, em quinze dias, por intimação pelo Diário Oficial, atribuindo ao insosso “Cumpra-se”, a função de fixar o marco temporal para a cobrança da multa. Digo maldosa, porque tal intimação é desnecessária, na medida em que, a partir do advento do artigo 475-J do CPC, a sentença condenatória passa a ter eficácia executiva plena, deixando apenas exalar perfumes de eficácia como era antes. Hoje, pelo transito em julgado, adquire eficácia executiva plena, tanto com relação à obrigação principal, quanto com relação à multa pelo descumprimento. Frise-se, que esta eficácia a sentença adquire como trânsito em julgado e não com o “Cumpra-se”. Ada Pellegrine Grinover, afirma, inclusive, ter havido uma eliminação das sentenças condenatórias puras, 2 “ou seja, aquelas que demandavam de um processo de execução autônomo.”
            Na dimensão antiga do processo de execução, também não havia de se reconhecer a existência de sentenças condenatórias puras, a nosso ver. Isto porque a sentença chamada condenatória em sentido amplo sempre pôde ser cumprida pelo devedor mediante a promoção de execução nos próprios autos contra o credor. Segundo o artigo 570 do CPC, “O devedor pode requerer ao juiz que mande citar o credor a receber em juízo o que lhe cabe conforme o título executivo judicial; neste caso o devedor assume, no processo, posição idêntica à do exequente.” Desse modo, se a lei nunca exigiu a citação do devedor para que cumprisse a sentença (cuja eficácia se entendia puramente condenatória), avançando ainda mais ao permitir que devedor cite o credor para pagar o que foi fixado na sentença, não há razão para se dizer que a eficácia executiva da decisão final fique subordinada a nova citação/intimação do devedor. Se pelas palavras da lei, o devedor pode compelir o credor a receber, é incoerente afirmar que a sentença só adquire eficácia executiva após o “Cumpra-se”, ou depois de efetuada a intimação do devedor, por seu advogado, para pagar o que é devido. Fica óbvio, que o trânsito em julgado é o momento em que a sentença adquire eficácia executiva sob todos os aspectos (obrigação principal e multa).
            Sendo assim, tal como Sérgio Niemeyer, entendemos que “O espírito da reforma que introduziu o artigo 475-J no CPC se não compagina com a exigência ou necessidade de proceder-se a intimação pessoal do devedor para solver o débito a que foi condenado”. 3 Em outras palavras, se a nova sistemática é a de concretizar de modo prático e célere um débito constituído (lato sensu) em sentença, imprimir nas letras do artigo 475-J do CPC que o famigerado “Cumpra-se” é quem fixa o marco temporal para a fluência do prazo para pagamento da multa ou da eficácia executiva da obrigação principal imposta na sentença, é o mesmo que usurpar a competência constitucional exclusiva da União para legislar sobre processo civil (artigo 22, I da CF).

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  1. Ações Individuais e Coletivas sobre Relação de Consumo – Reunião de Processos por Conexão, RDCPC, nº 44. P.58.
  2. Mudanças Estruturais no Processo Civil, RDPCP, nº 44, p. 39.
  3. Comentários sobre o artigo 475-J do CPC, in ADCOAS.